segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O genial Gore Vidal


Quando o escritor Gore Vidal (1925-2012) saiu de cena o mundo estranhamente se transformou numa aberração, alimentada por uma noia de “ordenamento” fascista, em todos os aspectos do comportamento humano. Em vida, apesar de ter sido perseguido pela onda do macartismo dos anos 50, o genial pensador foi um combativo defensor da liberdade e da cultura. Não se escondia e não foi dedo duro.
Ao longo de sua vida foi coerente quanto às suas escolhas sexuais e ideias políticas, e se isolou do mundo domesticado da sua terra natal se refugiando, durante um bom tempo, na Europa. Homossexual assumido, com várias histórias de luxuosos bacanais, Vidal produziu muitos livros de qualidade. Criação, Sede do Mal, Lincoln, Memórias de Adriano, A Era Dourada, 1876, Cidade e o Pilar e Myra Breckinridge são obras extraordinárias, que abrem espaços para belas narrativas épicas, sociais e comportamentais.
Alguns deles se tornaram filmes e peças de teatro, que escracham com muita sofisticação, a hipocrisia da elite conservadora norte-americana; afinal, Gore era uma voz única, que não se agarrava aos modismos literários. Ele gostava mesmo era de balançar as estruturas do mundo sozinho, sem se prender a qualquer espécie de movimento cultural vigente.
Atualmente, pouco conhecido pelas novas gerações, principalmente no Brasil, Gore Vidal é referência de um intelectual de fibra e sem amarras ideológicas, apesar de ser definido como liberal, ele pode ser considerado um dos maiores nomes da literatura do século 20. O escritor vendeu 300 milhões de livros, numa época que não existia YouTube, Facebook, Twitter e Instagram, mas tinha a televisão, o rádio e os artigos que escrevia nos jornais, que o ajudaram a popularizar internacionalmente o seu trabalho
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Por aqui não tivemos nenhum nome na literatura, como foi o fenômeno Gore Vidal, porque o Brasil começou o seu declínio cultural no período pós-64, quando a nossa intelectualidade foi pro limbo. Nesta época, foi inaugurado um estilo corporativo literário, voltado para uma narrativa de clichês humanos, que foi absorvida mercadologicamente pelos canais de TV que colaboraram na fragmentação da nossa cultura.
Mas voltando a Gore Vidal, a sua capacidade argumentativa, com sutis pinceladas de ironia, era formidável. E isso pode ser constatado no documentário “Melhores Inimigos”, que está na Netflix, quando Gore Vidal literalmente leva a nocaute William F. Buckley (1925-2008), um conservador e amigo pessoal do presidente Ronald Reagon (1911-2004). Era uma espécie de Olavo de Carvalho melhorado, mais sofisticado, mais erudito e mais articulado que o autor dos Jardins das Aflições.
Em 1968, durante as eleições presidenciais, tendo Richard Nixon (1913-1994) candidato republicano e Hubert Humphrey (1911-1978) representando os democratas, a TV ABC produz um debate entre Buckley e Vidal para colocar lenha na fogueira com duas figuras públicas famosas, um conservador o outro liberal, para digladiarem sobre o processo eleitoral dos Estados Unidos, numa das suas piores fases.
O clima no país estava pesado. Com os assassinatos de Martin Luther King (1929-1968) e do candidato presidencial Robert Kennedy (1925-1968), o medo era o principal inimigo do povo. Ainda havia os distúrbios raciais, Guerra do Vietnã e confrontos violentos nas universidades, portanto, o público entendia que o enfrentamento de Buckley com Vidal traria a tona muitos fantasmas, só não sabia que se transformaria num duelo de inimagináveis agressões verbais por parte de Buckley.
O canal ABC apostava tudo na audiência do debate. Só que as coisas saem de controle quando o conservador surta ao ouvir o autor de “Império” chamando-o de criptonazista. Não deu outra. As expressões faciais de William Buckley mudam completamente, seu corpo mexe em direção do oponente com a ameaça de um soco no nariz, e diz com voz raivosa ao vivo em rede nacional que Gore Vidal era um veado.
Esse episódio, de alguma forma, foi marcante na cultura pop americana. Um duelo intelectual que mostrou o potencial argumentativo de Gore Vidal, definindo-o como uma das mentes mais poderosas dos últimos tempos, dando a verdadeira noção da sua estatura humana, que colocou em xeque o establishment conservador, deixando o seu principal porta voz, William Buckley com seqüelas que se arrastaram até o final dos seus dias.
Em pleno século 21, quando os significados de esquerda e de direta, ou mesmo os conceitos de anarquia, de comunismo, de socialismo e de capitalismo foram distorcidos, e se tornaram utensílios para falsas conjecturas, há um vazio de ideias dentro do universo acadêmico e fora dele, porque não temos intelectuais interessantes e ativistas como foi Gore Vidal. Definitivamente ele faz muita falta.

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